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Queria dar voz à revolução e deu

Sou jornalista. Escrevi uma história a que ninguém no mundo parece ter dado atenção tirando os jornalistas espanhóis da agência EFE que a descobriram. É uma lição sobre liberdade de expressão.

Um miúdo de 14 anos é o mais jovem jornalista da Líbia. Chama-se Mohamed Malek e criou um jornal no Facebook em junho passado, pouco depois da eclosão da revolta popular naquele país no início do ano. A revolução fê-lo decidir avançar com o seu sonho de ser jornalista. Pediu a carteira profissional ao Conselho Nacional de Transição (CNT) e recebeu o número 2571. Milagre. Vezes dois.

Primeiro porque, para falar do seu projecto como fala Malek e arriscar dar a cara por uma agência de informação a meio de uma revolução armada (e enquanto se atravessa a puberdade), é preciso ter uma consciência política que reconheço em meia dúzia de adultos brilhantes. Depois, porque obter uma carteira profissional aos 14 anos, mesmo que credenciada por uma organização de revolucionários que trabalham para depor um ditador, é um facto histórico internacional.

Confesso que não li o trabalho do rapaz, porque escreve em árabe e não confio no Google Translate. Por isso, quando um leitor perguntou, nos comentários à notícia, “será que sabe escrever?”, fiquei sem resposta. Mas sabe do que fala, garanto-vos. E é, de certeza, jornalista.

Na entrevista que deu logo após cobrir uma conferência em que discursou Mustafa Abdulyalil, o presidente do CNT, Malek disse, como qualquer jornalista com menos de um ano de carreira, que queria ser “repórter internacional” e, logo de seguida, refilou com a velocidade da internet que usava para trabalhar. Típico.

Mas agora a sério… Diz no código deontológico que “o jornalista deve relatar os factos com rigor e exactidão”, que “os factos devem ser comprovados” e que “as opiniões devem ser sempre atribuídas”. O rapaz tem 14 anos e disse aos jornalistas da EFE: “uma vez um jornalista estrangeiro disse-me que eu era o mais novo director de um jornal do mundo. Não sei se é verdade”. Atribuído e ressalvado. Mandam as regras que o jornalista “combata a censura”. A primeira coisa que o jovem jornalista diz é que quis “dar voz à revolução”.

Jovens líbios participam em massa nas celebrações na Praça da Liberdade, em Misrata.

Também está estipulado que “o jornalista deve lutar contra as restrições no acesso às fontes de informação e as tentativas de limitar a liberdade de expressão e o direito de informar”. Malek responde: “Em vez de pegar em armas, como muitos dos meus compatriotas, comecei a contar o que se passava ao mundo”. E segundo contam os espanhóis, o pequeno repórter não tem medo de passar por entre as pernas dos jornalistas mais altos para chegar perto da sua fonte e fazer as perguntas que acha pertinentes.

O código responsabiliza o jornalista por “actos que violentem a sua consciência” e, claro, ainda há o dever de “rejeitar o tratamento discriminatório das pessoas em função da cor, raça, credos, nacionalidade ou sexo”. Malek escreve claramente nas informações da página do Facebook que afinal é a primeira agência de comunicação rebelde da Líbia, que esta “é independente” e que “pertence a todos os líbios, sem restrições”, referindo as rivalidades locais que surgiram após a revolta popular naquele país.

Outro leitor comentou: “Aqui teria de completar o 12º ano, fazer o mestrado, tirar uma ou duas pós-graduações e um doutoramento e lá para os 35 anos tirar a senha para receber uma proposta de emprego num call-center.” É quase assim. Falta-nos um Malek que nos mostre como é isso de ser jornalista sem condições. A Líbia – aliás, o mundo – precisa de gente assim.

in Standard’s & People, Pá!, 01/11/2011

OPINIÃO

Quero ser jornalista

O meu primeiro contacto com o mundo do jornalismo foi quando o meu pai chegou à maternidade e me agarrou pela primeira vez. Sim, sou filha do Pedro Tadeu, director do 24 horas, podem parar de se questionar sobre isso.

Lembro-me da primeira redacção que vi, a do Avante!. Lembro-me de pensar que as pessoas grandes se mexiam depressa demais e de ser gozada por não dizer os “Rs”. Lembro-me, mais tarde, de ficar fascinada durante horas a olhar para as rotativas d’A Capital enquanto o meu pai acabava de arrumar as coisas na pasta. Depois aparecia, dizia “olá filha, vamos!” e descíamos a escada de ferro. Entrávamos naquela sala enorme e fria e escolhíamos um exemplar para ler. Era giro, sentia-me importante por ser a primeira da minha turma a saber as notícias do dia seguinte (mas mais ninguém as queria saber, verdade seja dita). Depois ele gritava, bracejava e fazia cara de mau porque encontrava sempre montes de erros que o punham fora de si. De repente o silêncio e a mão dele na minha. Um sorriso simpático e lá íamos nós.

Uma vez no Natal, vi a minha tia Marina na televisão. Com certeza que tinha visto antes, mas devia ser um pequeno micróbio. Lembro-me dessa vez porque sei que não passou o Natal connosco como era costume. Estava a gravar qualquer coisa para a SIC e nós, tal família unida pelo telejornal à volta da mesa, esperámos e assistimos. Eu achei aquilo fantástico! Nunca a tinha visto tão bonita. Poderes da caixinha mágica…

Mudámo-nos para Santarém tinha eu 9 anos. Na mudança encontrei umas caixas cheias de cassetes e fui ouvi-las. Até chorei (ridícula!). O meu pai fez rádio mas eu não me lembro. Quando ouvi a voz dele nas cassetes viciei-me e ouvi umas 8 ou 9 de seguida, até a minha mãe dar pela minha falta, fechada no quarto deles. Corri para o telefone para ligar ao meu pai “não vais acreditar no que acabei de encontrar! Tens uma voz tão bonita…”

Agora é aquela parte em que eu digo que desde bebé que quero ser jornalista. Que é o sonho da minha vida e tal… Não é verdade. Com 10 anos queria ser veterinária, com 12 geóloga e aos 15 filósofa. Aos 17 fiz uma lista com uma centena de cursos nas universidades públicas de Lisboa, Porto e Coimbra. Aqui entra a minha mãe. Não, não é jornalista, nem pivot, nem repórter, nem locutora, nem produtora, nem realizadora, nem câmara, nem fotógrafa, nem crítica, nem sequer escreve o teleponto nem nada que tenha a ver com esta conversa. É professora, muito boa mesmo.

O meu pai fez uns cálculos complicadíssimos, umas tabelas com montes de valores e estatísticas para me ajudar a escolher o curso. A minha mãe não. Calou-se. E que santa atitude! Até ao dia das inscrições nas candidaturas, não me descosi com ninguém. O cúmulo, é que nem comigo própria. Não fazia a mais pequena ideia do queria ser quando fosse grande.

Consegui escolher seis cursos e pô-los por uma ordem que me pareceu a menos errada. Arrependi-me no momento da entrega e o assunto atormentou-me até há bem pouco tempo. Quem lá estava era ela, mais nervosa que eu, com um sorriso de quem está demasiado desconfortável para tentar falar. Quando chegámos a casa disse que provavelmente eu tinha feito asneira. “Mas não faz mal, depois fazes outro curso e pronto! Não te preocupes. Vais ser feliz!”.

Entrei na primeira opção, Ciências da Comunicação, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, na Universidade Nova de Lisboa. Na Avenida de Berna, mesmo à porta da primeira casa onde vivi! Comecei o ano com uma aula de Semiótica (não, não sei o que é) e telefonei à minha mãe: “’Tou, mãe? Sim, fiz mesmo uma asneira enorme…” Ela riu-se, o meu pai riu-se, a minha avó riu-se, o meu tio gozou-me (mas essa é a única forma que arranjámos de comunicar) e as minhas amigas entraram em pânico. Pensaram que daí a um ano ia tentar o suicídio, pois estava combinado que entrasse onde entrasse, não desistia. Em contrapartida podia estudar o resto da vida até acertar. Fui muito bem educada, graças a… à minha família. Não vou à missa aos Domingos, e não casarei virgem, mas aprendi a rezar no caso de me apetecer, conheço a ideia de Deus e a ideia de Marx, a ideia de Igreja e a ideia de Estado, a ideia de dinheiro e a ideia de Valor,  a ideia de saúde e a ideia de aventura, a ideia de responsabilidade e a ideia de liberdade. Não me furaram as orelhas nem me baptizaram. Nasci com liberdade para decidir tudo menos o nome. Cometi umas dezenas de milhares de erros, claro… mas aqui estou.

O primeiro ano da licenciatura foi o melhor e o pior da minha jovem vida. Conheci pessoas fantásticas, li imenso sobre tudo o que existe, aprendi a fazer arroz e a desentupir canos, fui estudar espanhol e tirar a carta. Tive aulas de Semiótica, Lógica, Sociologia, Economia, História, Métodos Quantitativos, Sistémica… faltei a metade e passei por um terço a dormir. Estava a detestar. Ainda por cima não sabia o que raio queria ser quando fosse grande. Depois fui fazer um interrail para desanuviar. Não, também não foi aqui que se deu a epifania… Não estava sentada num café em Paris, nem a beber cerveja em Munique, nem numa ponte em Praga, nem a navegar no Danúbio.

Chegou a altura da inscrição no 2º ano e tive de escolher a vertente. Que dor de cabeça. Escolhi jornalismo e nem sei porquê (talvez o subconsciente ou uma fada com pós de perlim-pim-pim)! Tinha direito a três opcionais e atirei-me de cabeça: Produção Jornalística, Jornalismo Televisivo e Jornalismo Radiofónico. Ainda só tive a primeira, acaba amanhã, aliás. Mas não, não foi a inspiração do professor António Granado. Não ia dar-lhe esse prazer, de ter mais um blog a dar-lhe graxa… Estava sozinha, no meio da estrada em Lisboa a meio de um dia qualquer sem importância nenhuma.

Tinha acabado o meu primeiro trabalho, sobre os gatos da faculdade. Estava terminado há dois dias. Há dois dias que não escrevia nada de criativo, não entrevistava ninguém, nem enviava e-mails com um “tom de voz” irado. Ressaca! Foi um vício instantâneo. Esperei acordada que o meu pai chegasse a casa. Ouvi os passos dele nas escadas e abri a porta: “Pai! Quero ser jornalista!”. Vêem? Não foi nada de grandioso. Mas nada na vida me deixou mais satisfeita que aquela ressaca até hoje.

Depois foi só alimentar o vício para o piorar. Não é necessariamente escrever. É querer saber tudo, ser chata. Falar com as pessoas, discutir assuntos, observar o mundo e fixar-me no mais idiota dos pormenores. Escrever, falar, fotografar, editar, ouvir, dizer, perguntar, ler, moer, descobrir, gravar, escarafunchar e gritar tudo o que sei (ou penso que sei) ao mundo. Quantas pessoas no mundo é que têm esta oportunidade? Quantas pessoas no mundo é que realmente querem saber tudo? Quantas pessoas no mundo é que tiram prazer da rotina? Quantas pessoas no mundo é que não se importam de correr o risco de serem mal pagas e trabalharem 12 horas por dia ou irem parar ao desemprego? Poucas. Mas eu, tenho a certeza de que esta é a melhor profissão do mundo.

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